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19 de Abril de 2024
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    Filiação socioafetiva: repercussões a partir do provimento 63 do CNJ

    Filiação socioafetiva: repercussões a partir do provimento 63 do CNJ

    RICARDO CALDERÓN[1]

    GABRIELE BORTOLAN TOAZZA[2]

    INTRODUÇÃO

    O Conselho Nacional de Justiça – CNJ editou um regramento que altera diversas questões relacionadas ao registro de pessoas naturais, dentre as quais a possibilidade de reconhecimento extrajudicial das filiações socioafetivas e registro dos filhos havidos por métodos de reprodução assistida. Trata-se do Provimento nº 63 do CNJ, de novembro de 2017, mais um exemplo do chamado movimento de extrajudicialização do direito privado, pelo qual diversas questões que anteriormente restavam restritas à apreciação do Poder Judiciário passam a poder ser solucionadas pelas vias extrajudiciais.

    Além da redução do número de demandas judiciais relativas ao registro civil, as novas permissões trazidas por este Provimento são dignas de favorecer um enorme contingente de pessoas em todo o território nacional, muitas das quais restavam sem formalização adequada da sua filiação justamente em face dos óbices que até então se apresentavam. As medidas implementadas visam facilitar o acesso a um direito que deve ser assegurado sem maiores obstáculos a todos: o registro do estado de filiação.

    Merece destaque especial a extensa capilaridade dessas disposições frente a atual realidade brasileira, que apresenta uma infinidade de combinações e recombinações familiares, cujas especificidades muitas vezes acabam por resultar em um déficit registral, em especial quanto à filiação.

    Os novos procedimentos estabelecidos são representativos de um outro momento para as serventias de registro de pessoas que, inequivocamente, passam a assumir um maior protagonismo.

    1 RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

    O direito de família brasileiro admite uma série de vínculos como suficientes para o estabelecimento da filiação. Elos biológicos, afetivos, presuntivos, registrais, adotivos ou decorrentes de reprodução assistida perfilam lado a lado no nosso sistema jurídico, todos passíveis de consagrar uma relação de parentesco[3].

    O reconhecimento da ligação socioafetiva como suficiente vínculo parental teve um longo percurso. Há mais de três décadas é conhecida entre nós a denominada “paternidade socioafetiva[4]”, relação precursora do reconhecimento dos vínculos socioafetivos na filiação[5].

    A literatura jurídica e a jurisprudência contribuíram significativamente para a consolidação desta modalidade de vínculo parental, de tal modo que atualmente é possível afirmar “que a socioafetividade tem um grande significado jurídico, integra o direito de família, possui caráter normativo[6]”.

    O Superior Tribunal de Justiça teve um papel central para densificar a socioafetividade no âmbito das relações paterno-filiais, uma vez que em diversas decisões esta Corte afirmou que a relação filial[7] pode se estabelecer exclusivamente por intermédio do vínculo afetivo.

    Até pouco tempo, o reconhecimento e registro de uma relação filial socioafetiva somente poderia se dar por intermédio de uma intervenção do Poder Judiciário. Ou seja, os interessados em ver registrada uma dada filiação socioafetiva (ainda que consensual) deveriam, necessariamente, ajuizar uma ação judicial para alcançar tal intento, o que demandava a intervenção de advogado, o custo e o tempo de um processo judicial, dentre outros percalços que envolvem uma demanda em juízo. Neste contexto, os cartórios de registro civil registravam de forma direta apenas filhos de pessoas que se declaravam ascendentes genéticas de quem pretendiam reconhecer ou, então, nos casos que incidiam as respectivas presunções legais (por exemplo, art. 1.597, CC)[8].

    Assim, eram registrados extrajudicialmente, ou seja, diretamente nas serventias de registro, apenas os filhos biológicos e aqueles havidos de relação na qual incidisse uma presunção legal (ex: havido durante o matrimônio[9]). Já os filhos socioafetivos só poderiam ser reconhecidos pela via jurisdicional, o que fazia com que muitos vínculos desta natureza não fossem devidamente registrados, apesar de presentes na realidade fática.

    Entretanto, a partir de 2013 essa situação começou a mudar no cenário brasileiro, pois alguns Estados passaram a permitir o reconhecimento da filiação socioafetiva de forma extrajudicial, diretamente nos cartórios de registro de pessoas naturais. O primeiro Estado a levantar a possibilidade de registro extrajudicial da paternidade socioafetiva foi Pernambuco. Em seguida outros Estados, tais como Maranhão, Ceará, Amazonas, Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e Sergipe, também acompanharam essa linha, com similar fundamentação. Contudo, cada Estado regulou o procedimento com as suas particularidades. Em consequência, passou a ser permitido o reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva em várias localidades, porém sem uniformidade nacional, cada qual com seus critérios e formatos distintos, enquanto que em alguns Estados a medida ainda não era sequer permitida.[10]

    Diante do grande dissenso nacional sobre a temática, o Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM elaborou um pedido de providências ao Conselho Nacional de Justiça – CNJ solicitando a uniformização de procedimento, para que houvesse igualdade e padronização na possibilidade de reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva em todos os cartórios de registro de pessoas naturais do país[11].

    O Conselho Nacional de Justiça admitiu a necessidade de uniformização do procedimento, entendendo que o reconhecimento extrajudicial da paternidade socioafetiva teria fundamentação legal no art. , III, art. 227, caput e § 6º da Constituição Federal, no art. 1.593 e art. 1.596 do Código Civil e no art. do Estatuto da Criança e do Adolescente, além de farta fundamentação doutrinária e jurisprudencial[12].

    Nesse ambiente, então, que no dia 14 de novembro de 2017, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento nº 63 para regular em todo território nacional o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva, entre outras deliberações.

    2 PROVIMENTO Nº 63 DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ

    O Provimento nº 63 do CNJ estabelece novos modelos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito; dispõe sobre o reconhecimento voluntário e averbação da paternidade e maternidade sociafetiva; e, ainda, regula o registro de nascimento dos filhos havidos por reprodução assistida. A partir desta normativa, que atinge todos os cartórios do país, os vínculos consensuais socioafetivos de filiação passam a poder ser registrados voluntária e diretamente nas serventias de registro civil de pessoas, sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário, o que é uma alteração significativa[13].[14]

    Logo no seu início, o Provimento traz diversos “considerandos” que auxiliam a compreensão da natureza das suas deliberações, dentre eles:

    “(...) CONSIDERANDO a existência de regulamentação pelas corregedorias-gerais de justiça dos Estados do reconhecimento voluntário de paternidade e maternidade socioafetiva perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais;

    CONSIDERANDO a conveniência de edição de normas básicas e uniformes para a realização do registro ou averbação, visando conferir segurança jurídica à paternidade ou à maternidade socioafetiva estabelecida, inclusive no que diz respeito a aspectos sucessórios e patrimoniais;

    CONSIDERANDO a ampla aceitação doutrinária e jurisprudencial da paternidade e maternidade socioafetiva, contemplando os princípios da afetividade e da dignidade da pessoa humana como fundamento da filiação civil;

    CONSIDERANDO a possibilidade de o parentesco resultar de outra origem que não a consanguinidade e o reconhecimento dos mesmos direitos e qualificações aos filhos, havidos ou não da relação de casamento ou por adoção, proibida toda designação discriminatória relativa à filiação (arts. 1.539 e 1.596 do Código Civil);

    CONSIDERANDO a possibilidade de reconhecimento voluntário da paternidade perante o oficial de registro civil das pessoas naturais e, ante o princípio da igualdade jurídica e de filiação, de reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade socioafetiva;

    CONSIDERANDO a necessidade de averbação, em registro público, dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação (art. 10, II, do Código Civil);

    CONSIDERANDO o fato de que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios (Supremo Tribunal Federal – RE n. 898.060/SC);

    CONSIDERANDO o previsto no art. 227, § 6º, da Constituição Federal e no art. 1.609 do Código Civil;

    CONSIDERANDO as disposições do Provimento CN-CNJ n. 13, de 3 de setembro de 2010, bem como da Resolução CNJ n. 175, de 14 de maio de 2013;

    CONSIDERANDO o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família, com eficácia erga omnes e efeito vinculante para toda a administração pública e demais órgãos do Poder Judiciário (Supremo Tribunal Federal, ADPF n. 132/RJ e ADI n. 4.277/DF);

    CONSIDERANDO a garantia do direito ao casamento civil às pessoas do mesmo sexo (Superior Tribunal de Justiça, REsp n. 1.183.378/RS);

    CONSIDERANDO as normas éticas para uso de técnicas de reprodução assistida, tornando-as dispositivo deontológico a ser seguido por todos os médicos brasileiros (Resolução CFM n. 2.121, DOU de 24 de setembro de 2015);

    CONSIDERANDO a necessidade de uniformização, em todo o território nacional, do registro de nascimento e da emissão da respectiva certidão para filhos havidos por técnica de reprodução assistida de casais homoafetivos e heteroafetivos; (...)”.[15]

    O escopo de uniformização dos procedimentos e de uma maior facilitação do registro dos vínculos socioafetivos é evidente, portanto, esta é a perspectiva pela qual devem ser interpretadas as suas deliberações.

    Certamente, um dos pontos centrais trazido pelo Provimento é a admissão do reconhecimento da filiação socioafetiva diretamente no cartório de registro civil, de forma extrajudicial, em todo o território nacional.

    Ressalte-se que a possibilidade de registro extrajudicial da paternidade ou maternidade socioafetiva facilita o acesso a um direito já reconhecido e aceito na realidade jurídica brasileira há muitos anos. A formalização deste vínculo filial diretamente nas serventias permite que a afetividade chegue até os balcões dos cartórios.

    A filiação, qualquer que seja sua origem, possui a mesma importância e deve receber igual respeito e consideração[16]. A facilitação do reconhecimento voluntário da filiação socioafetiva está alicerçada nos princípios da afetividade, da igualdade e do direito de filiação, de modo que não pode ser ignorada ou dificultada. Neste sentido, acerta o Conselho Nacional de Justiça ao adotar tal medida em prol da desburocratização, unificando esta possibilidade no cenário nacional.

    3. REQUISITOS PREVISTOS NA NORMATIVA

    Para que seja possível o reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva o Provimento nº 63 traz alguns requisitos específicos, todos eles devidamente detalhados em seus diversos dispositivos.

    3.1 Da existência inequívoca do vínculo socioafetivo da filiação

    A filiação socioafetiva é reconhecida pelo direito brasileiro há mais de três décadas, tendo como precursor o artigo chamado “Desbiologização da Paternidade”, de João Baptista Villela, de 1979[17]. Desde então doutrina e jurisprudência avançaram e densificaram o que se denomina como vínculo “socioafetivo” da filiação.

    Sinteticamente, é possível afirmar que a paternidade socioafetiva é a relação entre pai e filho que se constrói pela afetividade, cuidado, carinho e atenção ao longo da convivência familiar (comportamento social típico, convivência familiar duradoura e relação de afetividade familiar[18]). Pelo relacionamento paterno-filial serão formadas responsabilidades e referenciais que corresponderão a elementos fundamentais na formação, construção e definição da identidade do indivíduo. Dessa forma, a relação entre pai e filho socioafetivo vai sendo reconhecida entre o grupo familiar e terceiros, na realidade concreta[19].

    Assim, esse vínculo socioafetivo deve estar demonstrado na realidade fática por tempo suficiente para permitir a consagração destas relações, ou seja, o seu registro é sempre a posteriori, após já restar devidamente configurado no mundo dos fatos. Atualmente, tais critérios se estendem, da mesma maneira, para as denominadas “maternidades socioafetivas”[20].

    É importante frisar que os vínculos afetivos apenas se tornam aptos a produzir efeitos jurídicos quando presentes em longo espaço de tempo, o que exige anos de comprovada convivência, o que indicará a presença da estabilidade, requisito essencial para que possa ser considerado como passível de consubstanciar algum liame filial. Sem esta demonstração, da longa durabilidade da respectiva relação afetiva, não é possível se falar de socioafetividade para fins de registro de filiação. Este sentido é reconhecido pela doutrina e jurisprudência que tratam do tema, no direito de família brasileiro, de modo que não pode ser ignorado.

    É um aspecto central para que se possa falar da presença do vínculo de socioafetividade, tratado pelo respectivo Provimento, a demonstração inequívoca de anos de trato filial socioafetivo ininterruptos. Isto porque, a afetividade é apurada sempre de modo objetivo para fins jurídicos, com a demonstração de elementos concretos que a represente[21].

    Desta forma, resta possível se exigir elementos concretos (documentos, fotos, etc...) que demonstrem de forma incontroversa a ligação socioafetiva que se está a alegar. Caberá ao registrador solicitar essas provas até que se convença da existência desse vínculo (inclusive pode ser aconselhável guardar estas informações no respectivo processo).

    A partir destas premissas, resta possível afirmar que não parece adequado se falar de vínculo de socioafetividade filial em situações envolvendo recém-nascidos ou bebês de tenra idade, pois são circunstâncias que não se coadunam com o sentido jurídico extraído do vínculo socioafetivo de filiação.

    Desta forma, quando o caso envolver recém-nascido, bebê ou criança de tenra idade, necessariamente, o pleito de registro de filiação deverá ser remetido ao Poder Judiciário, pois certamente não estará presente uma socioafetividade manifesta, o que não possibilita o registro na forma prevista pelo Provimento nº 63.

    O reconhecimento da filiação socioafetiva em cartório somente ocorre nas situações de vínculos consagrados e incontroversos de filhos socioafetivos, ou seja, envolve crianças de certa idade[22], nas quais se constate anos de convivência socioafetiva (eventuais casos limítrofes podem ser previamente remetidos para consulta ao juiz responsável pelo Registro Público, o que também confere segurança ao procedimento).

    Importa destacar que, em regra, o reconhecimento de uma filiação socioafetiva difere em muito de um procedimento de adoção, visto que cuidam de situações distintas. Dentre outros, a distinção se dá pelo fato de que o reconhecimento de um vínculo socioafetivo é sempre retrospectivo (ou seja, de algo que já ocorreu na realidade concreta, já está consagrado por anos). Já na adoção se está a falar de algo que se pretende estabelecer, pois, usualmente, a adoção será o início do processo de convivência filial que se está a cuidar, ou seja, será usualmente prospectiva.

    Além disso, a filiação socioafetiva não destitui nenhum vínculo parental, só inclui outro ascendente. Já na adoção, primeiramente precisa ser rompido o vínculo com o ascendente registral, ou seja, ele precisa ser destituído do poder parental, para que depois possa ocorrer a adoção. Em outras palavras, na filiação socioafetiva será incluído mais um ascendente, porém os outros permanecerão no registro do filho; já na adoção, ocorre primeiro o rompimento do vínculo com o pai/mãe que consta no registro para, depois, ocorrer a adoção e a realização de uma nova certidão de nascimento apenas com o nome do pai adotante.

    Esta compreensão permite distinguir situações e demonstra que não se cuidará de adoções no registro civil, pois isto é (e continuará sendo) de competência exclusiva do Poder Judiciário. Ademais, a ciência da existência de qualquer processo judicial impede que se faça o registro na forma do Provimento nº 63 (requisito expresso da normativa). Além disso, esse requisito também afastará dos registradores casos de adoções, pois estes, geralmente, estão atrelados a processos judiciais (ou de adoção ou, ao menos, de desconstituição do poder familiar).

    Também não se mostra indicado o registro extrajudicial de filiações socioafetivas de filhos que por ventura estejam no Cadastro Nacional de Adoção. Certamente os registradores terão condições de distinguir situações, para não permitir o registro extrajudicial de crianças que estejam neste cadastro ou em processos do estilo (inclusive esse é um dos questionamentos que se recomenda ao registrador perguntar aos interessados e anotar no seu procedimento).

    Embora possam ter alguns pontos de contato em comum, o registro extrajudicial da filiação socioafetiva é uma coisa e a adoção é outra. Uma apurada compreensão do que seja um vínculo socioafetivo, bem como a percepção que ele deve ser demonstrado de forma objetiva, retrospectiva, certamente afastará quaisquer equívocos e permitirá se laborar com mais segurança nestas situações concretas.

    3.2 Demais requisitos formais

    O regramento também detalha todos os demais elementos que devem estar presentes para que um registro possa ser celebrado nos moldes apostos nesta normativa.

    Os demais requisitos expressamente previstos são os seguintes: que o requerente seja maior de 18 anos (independente do estado civil); não seja ascendente ou irmão do pretenso filho; que a diferença de idade entre o requerente e o filho tem que ser igual ou maior que 16 anos[23]; o pedido pode ser realizado em localidade diversa de onde foi lavrada a certidão de nascimento; deve haver consentimento expresso e pessoal da mãe e do pai; se o filho for maior de 12 anos também é necessário o seu consentimento; exige-se a coleta pessoal das assinaturas[24]; e, ainda, faz-se necessária uma declaração das partes de desconhecimento de discussão judicial sobre a referida filiação.

    Obviamente que para que um registro possa ser celebrado na forma do referido Provimento todos estes requisitos devem estar devidamente atendidos, com demonstração inequívoca da sua presença.

    Caso algum dos requisitos acima não possa ser atendido, o registro não poderá se dar pela via extrajudicial, devendo as partes, então, recorrer ao Poder Judiciário para pleitear o reconhecimento. Por outro lado, uma vez verificados, a filiação socioafetiva poderá ser consagrada diretamente pelo oficial de registro civil, que atestará o fato e emitirá o respectivo assento.

    Em casos de dúvida, suspeita ou inconsistência, o registrador deve fundamentar a recusa e enviar o pedido para o juiz competente, o que permite evitar fraudes e burlas. Esta permissão expressa fornece segurança ao processo, pois o registrador apenas celebrará o registro se estiver indene de dúvidas. Assim, parece que há salvaguardas adequadas para este procedimento.

    Além disso, o reconhecimento voluntário será irrevogável, somente podendo ser desconstituído judicialmente e desde que tenha havido vício de vontade, fraude ou simulação[25]. Ou seja, reconhecida uma filiação extrajudicialmente, sua desconstituição só poderá se dar pela via judicial.

    Cabe esclarecer, também, que não poderá ser realizado o reconhecimento voluntário em cartório caso os requerentes tenham em andamento processos judiciais de reconhecimento de paternidade ou de procedimento de adoção[26]. Nestas hipóteses, qualquer reconhecimento deverá ser remetido para as vias jurisdicionais.

    Outro aspecto tratado foi o registro de filhos havidos por técnicas de reprodução assistida[27], o que até então apresentava grandes obstáculos. Muitos casais que tinham filhos por tais métodos encontravam dificuldades no respectivo registro em nome de ambos (na maioria das vezes, tinham necessidade de recorrer até o Poder Judiciário para ver concretizado este registro). Interessante observar que, quanto a estes, o Provimento nº 63 passa a suprir uma lacuna da lei, a partir dele os filhos decorrentes de técnicas de reprodução assistida podem ser registrados independentemente de prévia autorização judicial, ou seja, podem obter a certidão de nascimento diretamente no cartório de registro civil, o que também é um grande avanço. Esta facilitação era necessária e confere maior dignidade para essas situações jurídicas.

    Nestas hipóteses, caso os pais sejam casados ou convivam em união estável, poderá comparecer somente um deles para realizar o ato[28]. Em relação a filhos de casais homoafetivos, que se utilizaram da reprodução assistida, a novidade está na certidão de nascimento, que fará constar os nomes dos ascendentes sem referência a distinção quanto à ascendência paterna ou materna[29]. Essa regra também contribui para que os filhos reconhecidos de casais homoafetivos não sofram discriminações[30].

    Para a realização do registro nos casos de nascimento por reprodução assistida, será necessário apresentar: declaração de nascido vivo (DNV); declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando que a criança foi gerada por reprodução assistida heteróloga, assim como o nome dos beneficiários; certidão de casamento, certidão de conversão de união estável em casamento, escritura pública de união estável ou sentença em que foi reconhecida a união estável do casal.[31]

    Nas situações de filhos que nasceram por essas técnicas, resta expresso que o conhecimento da ascendência biológica passa a não resultar no vínculo de parentesco entre o doador ou a doadora e o filho gerado[32], o que se mostra adequado e diferencia essas categorias. A distinção entre filiação e descendência genética segue sendo de grande relevância em muitos casos concretos, visto que nem todo ascendente genético será pai[33], o que não pode ser olvidado (distinção já reconhecida pela doutrina brasileira[34]). A partir de então, resta vedado aos oficiais registradores a recusa à emissão do adequado assento de nascimento dos filhos havidos por técnica de reprodução assistida.[35]

    3.3 Registro extrajudicial de relações multiparentais consensuais

    Quanto à multiparentalidade[36], situação na qual há uma pluralidade de pais ou mães de forma concomitante, o Provimento também inova. Com ele, passa a ser possível o registro multiparental diretamente na serventia extrajudicial, sem necessidade de se recorrer à via jurisdicional, desde que um dos vínculos seja socioafetivo e, também, que se atendam a alguns outros requisitos.

    O art. 14 do Provimento dispõe que “o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo filiação no assento de nascimento”.

    Fica evidente pelo teor do seu art. 14, corroborado pelos “considerandos” iniciais do regramento, a possibilidade jurídica da multiparentalidade pelo referido procedimento. Assim, é inequívoco que este dispositivo torna possível o reconhecimento extrajudicial de relações multiparentais[37].[38]

    E nem poderia ser diferente, visto que em 2016 o Supremo Tribunal Federal reconheceu a possibilidade jurídica da multiparentalidade, a partir da tese aprovada na Repercussão Geral 622: “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”[39]. Esta deliberação do STF tem efeito vinculante e abrangência nacional, de modo que não poderia ser desconsiderada pelo CNJ.

    A multiparentalidade é a situação existencial na qual uma pessoa possui vínculo de filiação com dois pais, ou com duas mães, concomitantemente[40]. O Provimento trata da relação multiparental envolvendo um ascendente socioafetivo e outro biológico e/ou registral. Nestes casos, haverá uma igualdade entre as parentalidades biológica e socioafetiva, pois entre elas não há hierarquia[41]. Pela decisão do STF, é possível a manutenção de ambas as filiações de forma concomitante. A permissão do registro extrajudicial de relações pluriparentais é, certamente, uma das grandes inovações do Provimento.

    Esta regra determina que o reconhecimento seja sempre unilateral, o que significa que deverá se dar ou do lado paterno ou do lado materno (nunca de ambos). Ou seja, o reconhecimento extrajudicial não permite o registro de uma paternidade e de uma maternidade socioafetiva ao mesmo tempo. Assim, a chamada multiparentalidade bilateral (dois pais e duas mães em um mesmo registro, totalizando quatro ascendendentes de primeiro grau) resta vedada em cartórios, visto que não foi permitida pelo Provimento.

    Portanto, quando acionada, esta via extrajudicial permite apenas o registro unilateral de apenas mais um ascendente em multiparentalidade (ou dois pais ou duas mães). Há que se destacar que os casos de multiparentalidade bilateral são mais raros e escassos, mas se narrados em cartório, esta situação deve ser remetido ao Poder Judiciário. Desta forma, quando descrita em cartório uma situação de multiparentalidade bilateral, a cautela pode recomendar a remessa deste caso como um todo ao Poder Judiciário, sem a celebração pelo registrador de nenhum registro (nem de forma unilateral), visto envolver uma situação mais complexa. Como visto, esta recomendação se deve a intenção explícita do CNJ no sentido de que o Provimento nº 63 não seja utilizado para “adoções à brasileira”.

    4 EFEITOS PRÁTICOS A PARTIR DAS NOVAS REGRAS

    Mesmo trazendo diversos avanços, existem questões que podem gerar dúvidas quando da aplicação do Provimento, e são essas situações que agora serão abordadas.

    4.1 Nome

    Primeiramente, devemos esclarecer sobre a possibilidade de inclusão do sobrenome do pai diretamente no nome do filho reconhecido. Ou seja, alterar o nome do filho para que já conste o patronímico do pai que está realizando o reconhecimento. O Provimento nº 63 não foi explícito sobre este tema.

    Para análise dessa questão, deve-se realizar uma analogia entre o vínculo biológico e o socioafetivo. Nos reconhecimentos extrajudiciais de filhos biológicos, é permitida a inclusão do patronímico do pai que está a reconhecer este vínculo, realizada diretamente pelo cartório do registro civil. Isso é o que prevê o Provimento nº 16 do CNJ sobre o reconhecimento espontâneo de filhos perante os registradores, que expressamente permite a alteração do nome do filho reconhecido para a devida inclusão do sobrenome do pai declarante.

    Por analogia, é possível sustentar a possibilidade de inclusão do sobrenome do pai que está a reconhecer um filho na forma prevista pelo Provimento nº 63. Em outras palavras, quando o cartório registra um pai com alegação de vínculo biológico ele já acrescenta o sobrenome deste pai no nome do filho, o mesmo deve ser facultado aos reconhecimentos socioafetivos.

    Não teria sentido que a pessoa pudesse realizar extrajudicialmente o reconhecimento do vínculo socioafetivo da filiação e, em seguida, precisasse ingressar com uma demanda judicial para incluir o patronímico no nome deste filho, o que afrontaria a pretendida desjudicialização prevista no Código de Processo Civil e um dos escopos do próprio novo regramento.

    Portanto, no momento em que é realizado o reconhecimento voluntário do vínculo de filiação nos moldes previstos pelo Provimento nº 63, o cartorário pode realizar a inclusão do sobrenome do ascendente no nome do filho que está a ser registrado, se esse for o desejo das partes. Obviamente que essa inclusão é uma faculdade e dependerá da vontade dos interessados.

    Outra observação relevante é que o registro, na forma do Provimento nº 63, deve passar a anotar tanto os dados da pessoa que está realizando o reconhecimento (pai e/ou mãe), como o dos respectivos avós. O vínculo de parentesco reverbera de diversas formas como na sucessão, impedimentos para o casamento, nepotismo, entre outros, de modo que inexoravelmente devem ser verificados.

    Assim, havendo o reconhecimento da filiação, além da inclusão do nome do pai/mãe socioafetivo, deve ser inserido o nome dos respectivos avós socioafetivos nesse assento de nascimento, sendo esta inclusão cogente e independente da vontade das partes.

    4.2 Anuência em caso de falecimento ou desaparecimento de qualquer dos envolvidos

    Outro ponto que pode gerar dúvidas está relacionado à necessidade de coleta de anuência do pai, da mãe e do filho maior de doze anos, que deve ser feita pessoalmente perante o oficial do registro ou escrevente autorizado, exigência expressa para que possa ser realizado o reconhecimento da filiação socioafetiva (art. 11, § 5º).

    O Provimento é muito claro quanto à necessidade da coleta de concordância pessoal dos pais e do filho maior de 12 anos perante o oficial do registro civil de pessoas naturais, ou seja, todos devem comparecer pessoalmente perante a serventia para declarar tal reconhecimento, uma exigência condizente com a solenidade do ato. Porém, na hipótese de alguns deles estar morto ou desaparecido, como deverá ser o procedimento?

    Nestas situações resta inviável o registro extrajudicial.

    Em caso de ausência de uma dessas pessoas, seja por falecimento, desaparecimento ou impossibilidade de se fazer presente, o reconhecimento não poderá ser feito em cartório e, assim, as partes deverão propor uma demanda judicial de reconhecimento de paternidade socioafetiva, como dispõe o § 6º do artigo 11 do Provimento.

    4.3 Anuência do adolescente – filho reconhecido entre 12 e 18 anos

    O novo regramento prevê a coleta de anuência do filho nos registros que cuidarem de adolescentes de 12 a 18 anos, de modo que, nestas hipóteses, estes também deverão comparecer ao cartório para tomar ciência do ato de reconhecimento da respectiva filiação que é formalizada.

    Parece adequada esta cautela que confere mais um elemento de segurança e controle ao respectivo registro, visto que o adolescente comparecerá perante o oficial para tomar ciência do ato que se formaliza. Neste momento, o registrador pode inclusive averiguar a veracidade do vínculo socioafetivo apresentado diretamente com o adolescente. Obviamente que isto envolve mais um ator no processo, o que aumenta a integridade do que se está a registrar. Caso tenha qualquer objeção, será manifestada e o registrador levará o caso ao juiz responsável.

    Na atualidade, parece que os adolescentes estão aptos a opor sua mera anuência a uma questão como esta, de modo que deve ser elogiada a medida ao prever a participação direta de um dos maiores interessados no ato: o próprio filho.

    Admitir um maior protagonismo dos adolescentes nas situações que os envolvam demonstra o acerto da medida. Não se está a falar aqui de qualquer negócio jurídico de interesse do filho, o que poderia envolver a representação ou assistência (na forma dos artigos e do Código Civil), mas sim da percepção da possibilidade de uma mera anuência direta do adolescente. Quem defende esta medida é Paulo Lépore que antevê, em situações do estilo, o reconhecimento de uma “capacidade progressiva” do adolescente[42]. Importante destacar que esta manifestação é semelhante àquela exigida nos processos de adoção.

    O direito da criança está fundado na premissa da proteção integral, conforme dispõe o Estatuto da Criança e do AdolescenteECA em diversas passagens, portanto a capacidade das crianças e dos adolescentes vai progredindo conforme o seu crescimento[43], pois são pessoas em um estágio peculiar de desenvolvimento (físico, moral, psíquico).

    Conforme explica Paulo Lépore, as crianças e adolescentes, mesmo sendo pessoas em desenvolvimento, têm direito a manifestar posições e oposições. Em razão da proteção integral elas são titulares de interesses subordinantes perante a família, a sociedade e o Estado[44].

    Lépore afirma que “(...) contemporaneamente, o Direito da Criança se assenta na premissa da proteção integral, ideia segundo a qual a capacidade dos infantes vai progredindo ao longo do tempo, de modo que disciplinas jurídicas estanques e simplistas não são consideradas suficientes para explicar o gozo e o exercício de direitos por parte dos infantes[45].”

    O Provimento nº 63 do CNJ prevê que os adolescentes, maiores de 12 anos, devem expressar seu consentimento para a inclusão de pai/mãe socioafetivo no seu registro de nascimento, o que demonstra a observação da implementação do princípio da proteção integral e da capacidade progressiva dos menores de idade[46]. As crianças que têm capacidade de formular suas opiniões devem ser ouvidas, pois mesmo estando em desenvolvimento, têm vontade e devem se manifestar sobre questões relacionadas a sua vida.

    Desta forma, se o reconhecimento é de criança menor de 12 anos será necessária apenas a coleta da anuência do pai e da mãe registral; mas se o reconhecimento é de adolescente maior de 12 anos a coleta da manifestação deverá ser do pai registral, da mãe registral e também do filho adolescente.

    4.4 Reconhecimento de filho maior de 18 anos

    Caso o reconhecimento for de filho já maior de idade só será necessária a coleta da anuência do filho, sem ser estritamente necessária a assinatura dos demais pais registrais.

    Em caso de reconhecimento socioafetivo de filho maior de 18 anos, parece ser possível afirmar que não será necessária a assinatura dos pais registrais, apenas a do filho maior de idade e do pai que está reconhecendo o vínculo socioafetivo, interpretação a contrario sensu do artigo 11 do Provimento[47].

    Entretanto, ainda assim parece recomendável ao registrador, no mínimo, verificar a possibilidade de anuência dos pais registrais já reconhecidos, de modo a conferir maior transparência e informação ao que se está a celebrar. Se for possível, sugere-se que se colham tais assinaturas também, mesmo no caso de filhos maiores de 18 anos.

    Na eventual hipótese de algum ascendente já reconhecido não querer participar do ato de registro que envolve o filho maior de idade, mas que não apresente nenhuma objeção, resta possível celebrar o ato, pois o Provimento prevê a anuência de pais de filhos menores de idade apenas.

    Por outro lado, caso neste contato com algum dos pais já reconhecidos apareçam questões duvidosas ou oposições sérias e fundamentadas ao pretenso novo registro, pode ser conveniente uma consulta ao juiz responsável. Este proceder confere a segurança inerente ao ato que se está a formalizar.

    4.5 Cartórios diversos: do reconhecimento e do registro

    Outra situação que deve ser destacada é a possibilidade do reconhecimento voluntário de paternidade ou maternidade socioafetiva poder ser realizado perante oficial de registro civil de pessoas naturais, diverso daquele que foi lavrado o registro de nascimento (art. 11, caput). A confusão que pode ocorrer está relacionada com o estabelecimento pelo Provimento da necessidade do reconhecimento ser pessoal, porém ele pode ser realizado em serventias cartorárias distintas.

    Isso significa que é possível que uma das partes se apresente em cartório de registro civil diverso daquele no qual está sendo realizado o procedimento. Ou seja, o comparecimento deve ser de todos e sempre pessoal perante um registrador, mas nada impede que uma das partes se apresente e declare o necessário em localidade diversa daquela na qual se processa o requerimento. Nesses casos, as serventias compartilharão as informações e viabilizarão o prosseguimento do pleito, mesmo quando envolver pessoas em locais distintos. Como dispõe o Provimento inicialmente em um “considerando”[48], o sistema de registro eletrônico facilita a interoperabilidade de dados.

    Além disso, o artigo 11, nos §§ 1º e 2º[49] determina que o registrador deve proceder uma minuciosa verificação dos documentos pessoais e da identidade do requerente, coleta da sua qualificação, assinatura e manter uma cópia do documento de identificação e do termo assinado. Dessa maneira, após a realização do reconhecimento, de cópia dos documentos pessoais e do termo, através do sistema de registro eletrônico, os cartórios podem se comunicar e realizar nova certidão de nascimento com a inclusão do pai/mãe socioafetivo. Essa também é a posição indicada no Provimento nº 16 do CNJ[50], que estabeleceu regras nos casos de reconhecimento de paternidade em cartório diverso daquele no qual está o assento de nascimento.

    Portanto, o Provimento determina que o reconhecimento precisa ser realizado pessoalmente, com a coleta da anuência do pai, da mãe e do filho maior de 12 anos, mas em nenhum momento ele estabeleceu que essas formalidades devam se dar no mesmo cartório, com todas as pessoas envolvidas presentes no mesmo momento. Assim, é possível que o reconhecimento de um dos interessados ocorra no registro de uma dada localidade e, posteriormente, a coleta das anuências dos demais envolvidos aconteça em outro local.

    4.6 Reconhecimento em disposição de última vontade

    Outro ponto a se destacar é a possibilidade de reconhecimento da filiação socioafetiva através de documento público ou particular de disposição de última vontade, conforme dispõe o artigo 11, § 8º[51].

    Entende-se, assim, que constando em testamento o reconhecimento de uma paternidade ou de uma maternidade socioafetiva, será válida a manifestação e poderá ser processado na forma do Provimento nº 63.

    4.7 Multiparentalidade: possibilidade de registro extrajudicial

    Conforme anteriormente exposto, uma disposição muito importante está contida no artigo 14[52] e se refere à possibilidade de registro extrajudicial da multiparentalidade[53]. Isso porque, ao dispor que o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva não poderá implicar no registro de mais de dois pais e duas mães, o Provimento, a contrario sensu, permite o reconhecimento de até dois pais e de até duas mães, admitindo, assim, o registro extrajudicial de relações multiparentais.

    A possibilidade do reconhecimento de relações multiparentais diretamente no ofício civil, sem necessidade de qualquer ação judicial, é deveras inovadora e certamente traz desafios, mas está de acordo com o atual estágio do nosso direito. Não se pode negar que as serventias de registro estão a vivenciar um novo momento, com maior protagonismo, de modo que certamente saberão fazer frente a essa nova tarefa que agora lhes é confiada pelo Conselho Nacional de Justiça.

    O artigo 14 do Provimento nº 63, em relação à expressão “unilateral”, gerou diversas discussões na doutrina sobre a sua extensão. Muitos registradores também tinham dúvidas sobre a extensão do termo “unilateral” neste dispositivo. Em consequência, em 18 de julho de 2018, o Corregedor Nacional de Justiça, Ministro João Otávio de Noronha, prestou um esclarecimento formal e se manifestou sobre o adequado sentido do termo no dispositivo[54].

    Nesta manifestação o Corregedor do CNJ procura tornar claro que o intuito do regramento é permitir o reconhecimento extrajudicial de vínculos socioafetivos, mas apenas unilateralmente. Ou seja, quando acionado, esse reconhecimento extrajudicial somente poderá reconhecer um ascendente por esta via (ou um pai, ou uma mãe).

    Portanto, uma vez requerido o reconhecimento extrajudicial de vínculo socioafetivo do lado paterno, não poderá ser realizado ao mesmo tempo o reconhecimento extrajudicial de vínculo socioafetivo do lado materno (e vice-versa). A medida tem o claro intuito de evitar a tentativa de regularizações de “adoções à brasileira” por esta via.

    Desta forma, a multiparentalidade segue permitida quando se referir apenas a um lado, ou seja, um segundo pai ou uma segunda mãe, desde que preenchidos os requisitos previstos no Provimento nº 63.

    Uma vez formalizado um vínculo socioafetivo extrajudicial de um ascendente (seja paterno ou materno), o reconhecimento de um novo vínculo socioafetivo de outro ascendente só poderá ser realizado judicialmente, é o que se extrai do supracitado esclarecimento.

    O restante do Provimento é firme ao estabelecer a multiparentalidade dentro das suas regras, o que é reforçado pelo artigo 11, § 3º[55], que exige, além dos dados do requerente, que sejam colhidas as assinaturas do pai e da mãe, ou seja, do interessado e mais as dos dois pais que, por ventura, já constem no registro de nascimento. Portanto, essa regra demonstra a autorização para o estabelecimento de multiparentalidade, pois fixa em, pelo menos, três assinaturas as necessárias para esses casos “multiparentais”.

    Não se pode olvidar que um “considerando” faz referência expressa à tese do Supremo Tribunal Federal na Repercussão Geral 622[56], que reconheceu a paternidade socioafetiva e a multiparentalidade, afirmando que o reconhecimento do vínculo socioafetivo não impede a existência concomitantemente da filiação baseada na origem biológica.

    Assim, em mais de uma vez no decorrer do Provimento nº 63, o CNJ deixa clara a sua posição sobre a possibilidade de registro de mais de um pai/mãe no assento de nascimento, o que, inequivocamente, implementa a possibilidade de registro da multiparentalidade de forma extrajudicial.

    Entretanto, um aspecto que merece destaque é que o regramento prevê a possibilidade de registro extrajudicial apenas UNILATERAL de relações multiparentais. Ou seja, apenas ou do lado paterno ou do lado materno. Com isso, fica permitido o reconhecimento de uma multiparentalidade unilateral nos cartórios.

    Já eventuais casos de multiparentalidade bilaterais, que envolvam dois pais e duas mães, com quatro ascendentes no total – hipótese não usual, diga-se de passagem – não podem ser registrados extrajudicialmente, pois o Provimento não prevê a bilateral.

    Para ficar claro: só é possível ocorrer o reconhecimento da filiação multiparental de forma unilateral, ou seja, o reconhecimento pode ser somente do lado paterno ou do lado materno. Se os envolvidos quiserem o reconhecimento da multiparentalidade tanto do lado paterno como do lado materno, os cartórios devem informar a impossibilidade de reconhecimento extrajudicial e remeter os autos ao juízo competente.

    Esta questão, como anteriormente exposto, restou esclarecida por uma manifestação do próprio CNJ em julho de 2018, na qual houve indicação expressa de que o Provimento não deve permitir que se registrem extrajudicialmente multiparentalidades “bilaterais”.

    Ademais, como visto, a multiparentalidade que se está a tratar pelo Provimento nº 63 será sempre a que cumule um vínculo socioafetivo consagrado com um vínculo biológico ou registral. Nestas hipóteses resta autorizada a utilização da via prevista nesta normativa, que regula o que o próprio STF previu ao julgar a Repercussão Geral 622. Ambos os casos permitem multiparentalidades decorrentes da cumulação de elos socioafetivos com biológicos ou registrais, o que parece acertado.

    Entretanto, a complexidade da vida e avanço da sociedade estão a apresentar outras possíveis situações nas quais seria passível de gerar uma relação multiparental, mas que não se enquadram expressamente nesse formato previsto pelo Provimento (que exige sempre vínculo socioafetivo consagrado + biológico ou registral).

    Estas outras situações distintas e peculiares, que se afastam das balizas do Provimento nº 63, não podem ser registradas extrajudicialmente[57]. Nestas situações díspares o registrador não poderá atender o pleito (por mais que pareça justo), mas deverá necessariamente remeter o caso o Poder Judiciário.

    Para ser claro, são possíveis outras situações que envolvam casos que não os previstos expressamente pelo Provimento nº 63, porém eles não podem ser registrados diretamente em cartório. Por exemplo, os casos de registro de recém-nascido havido por casal homoafetivo, mas que teve o filho por outra forma que não a reprodução assistida devidamente formalizada. Nesta hipótese, como são circunstâncias que não foram expressamente autorizadas pelo Provimento, os cartórios não têm competência para o registro. Assim, ao que parece, o reconhecimento desta filiação deve se dar por intermédio do Poder Judiciário, com a participação do Ministério Público.

    Existem diversas espécies de multiparentalidades[58], porém, a partir da publicação do Provimento nº 63, os cartórios de registro civil só estão autorizados para realizar o registro daquelas que atendam as suas especificações, ou seja, de relações socioafetivas incontroversas da filiação e situações de reprodução assistida. Demais casos que possam justificar alguma outra relação multiparental, mas que porventura

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