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16 de Abril de 2024

Entrevista: especialista comenta a Lei da Palmada

A Lei nº 13.010/2014, Lei Menino Bernardo, sancionada em junho pela presidente Dilma Rousseff, alterou o ECA para garantir às crianças e adolescentes brasileiros o direito de serem educados sem o uso de castigos físicos e de tratamento cruel ou degradante. Nesta entrevista a procuradora de Justiça Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel (MP-RJ), presidente da Comissão Nacional da Infância e Juventude do IBDFAM, reflete que apesar de o ECA já possuir arcabouço preventivo e punitivo suficientes para tratar do encargo dos pais de educar os filhos, a nova lei impôs mais ênfase a esta prevenção. Confira:

Como a senhora avalia a Lei nº 13.010/2014, também conhecida como Lei Menino Bernardo e Lei da Palmada?

Antes de adentrar na pertinência ou não da modificação havida no ECA recentemente pela Lei nº 13.010/2014, deve ser feita uma análise breve dos dispositivos que tratam da prevenção dos castigos perpetrados pelos pais aos filhos menores no exercício da responsabilidade parental. O dever de criar e de educar o filho estão previstos no art. 229 da Constituição Federal e foram inseridos no inciso I do art. 1.634 do Código Civil de 2002, repetindo norma idêntica do Código Civil de 1916 e a regra estatutária do art. 22. No exercício do poder familiar, acopladas à educação formal (ensino em estabelecimento escolar), confere-se aos pais o dever de correição e de disciplina que significam impor limites necessários à boa convivência familiar e social, educando os filhos com carinho e diálogo para que sejam bons cidadãos e possam conviver em sociedade. Para tanto, os pais devem observar regras mínimas de respeito, liberdade e dignidade do filho que são direitos fundamentais. O direito ao respeito, previsto no art. 227 da CF/88, está literalmente dissecado nos arts. 15 e 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente e consiste, dentre outros direitos, na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da pessoa em formação. Qualquer espécie de punição aplicada ao filho que redunde em lesão a tal direito, deve ser prontamente repudiada e severamente punida. Sendo assim, o próprio ECA dispõe, desde sua inicial redação, acerca das medidas punitivas levadas a efeito quando extrapolado o direito de educar (art. 129 do ECA). As medidas podem variar desde o acompanhamento psicológico, a advertência, a perda da guarda ou a suspensão ou perda do poder familiar. Ademais, o castigo imoderado dos pais aos filhos já se caracteriza, há muitas décadas na legislação civil, como uma das causas de perda ou a destituição do poder familiar (art. 1.635, V, do CC c/c art. 24 do ECA). Essa hipótese, contudo, depende de uma decisão judicial condenatória, a ser proferida em ação própria, que visa aplicar esta medida punitiva mais gravosa aos pais (art. 129, X, do ECA). Para tanto, há que se aferir se o direito à correção foi excedido pelos pais e se violou as regras mínimas de respeito à integridade física e psicológica do filho, tipificando, inclusive, um delito criminal ou a infração administrativa prevista no art. 249 do ECA. Como estes abusos físicos decorrentes da correção e disciplina são cometidos, normalmente, no âmbito restrito da família, o diagnóstico da criança maltratada requer técnicas específicas pelos setores que interagem com a vítima, como, por exemplo, de ensino e de saúde, de maneira a apontar a ocorrência dos maus-tratos e evitar a sua perpetuação. Aliás, deixando estes profissionais de comunicar à autoridade competente os casos de que tenham conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente, poderão ser punidos financeiramente pela infração do art. 245 do ECA. Acentue-se, assim, que o dever legal não está restrito àqueles profissionais, mas é dever de todos zelar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor (art. 18 do ECA). Deve fazer parte do exercício da cidadania plena o direito e dever de todo e qualquer cidadão notificar uma situação de maus-tratos a crianças e adolescentes a órgãos de proteção. Tal dever decorre da doutrina da proteção integral, compelindo a família, a sociedade e o Estado a participar e promover a defesa dos direitos de crianças e adolescentes.

Então, o que a Lei Menino Bernardo acrescentou?

Pretendeu a lei, a meu ver, conferir mais uma vertente ao direito fundamental ao respeito cunhado no art. 227 da CF, qual seja, o direito de ser cuidado por todos. Já se estabelecera no art. 18 ser dever de todos zelar pela integridade física e psíquica dos infantes e jovens, mas com a nova lei passou-se a prever expressamente no art. 18 A o direito da criança e do adolescente de serem educados e cuidados sem o uso de castigos físicos ou de tratamento cruel ou degradante. Em primeiro lugar, nota-se a inserção da palavra cuidado relacionada ao tratamento disciplinar que os pais e outras pessoas devem dispensar aos seus pequenos. O cuidar está umbilicalmente ligado ao proteger e, portanto, nos pareceu pertinente a utilização desta expressão, pois engloba uma vertente de atenção, desvelo, responsabilidade pelo outro. E mais. Pela nova lei, a criança e o adolescente têm o direito de ser educados e cuidados sem o uso de castigo físico ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, não somente por aqueles que exercem o poder familiar: os pais. Percebe-se que a novel lei, seguindo o princípio da cooperação do art. 227 da CF, ampliou o rol de pessoas responsáveis de fato por educar (múnus do poder parental) os infantes e jovens: a família extensa, os responsáveis, os agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, tratá-los, educá-los ou protegê-los. A referida lei, em segundo lugar, definiu as ações caracterizadoras de violação à educação e ao cuidado: a) castigo físico: ação de natureza disciplinar ou punitiva aplicada com o uso da força física sobre a criança ou o adolescente que resulte em: a) sofrimento físico; ou b) lesão; II - tratamento cruel ou degradante: conduta ou forma cruel de tratamento em relação à criança ou ao adolescente que: a) humilhe; ou b) ameace gravemente; ou c) ridicularize. Estas formas de manifestação da violência tiveram a intenção de delimitar a tênue linha entre disciplina e correição imoderada. Adiante, no art. 18 b e parágrafo único, a lei deixou claro que, sem prejuízo de outras sanções cabíveis, sempre que estiverem caracterizadas as violações do artigo anterior, serão aplicadas medidas punitivas, de acordo com a gravidade do caso, pelo Conselho Tutelar: I - encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família; II - encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; III - encaminhamento a cursos ou programas de orientação; IV - obrigação de encaminhar a criança a tratamento especializado; V - advertência. Quanto às medidas punitivas nenhuma novidade foi dita pela Lei nº 13.010/2014, uma vez que foi apenas uma repetição do que está disposto nos incisos I, III, IV, VI, VII do art. 129 do ECA desde a sua redação inicial. Além disto, é evidente que a atuação do Conselho Tutelar na aplicação destas medidas punitivas (art. 136 do ECA) não exclui e nem condiciona a aplicação da medida da perda do poder familiar ou da guarda pelo Poder Judiciário.

Mesmo com todas essas garantias já previstas no ECA, a Lei Menino Bernardo veio conferir maior proteção para as crianças e os jovens?

Os dispositivos da nova lei apenas conferiram mais ênfase a esta prevenção através do Conselho Tutelar que deve estar muito bem aparelhado para bem exercer esta função. Exemplo disso é a alteração do art. 13 do ECA que passou a rezar que: Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais. Por fim, a lei realçou também a atuação da rede de proteção formada pelo sistema de garantia de direitos infanto-juvenis deixando claras as ações articuladas a serem implementadas pela União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios (art. 70 A). Mas não somente o ECA sofreu alterações. O art. 26 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educacao Nacional) em seu § 8º passou a alertar que conteúdos relativos aos direitos humanos e à prevenção de todas as formas de violência contra a criança e o adolescente serão incluídos, como temas transversais, nos currículos escolares de que trata o caput deste artigo, tendo como diretriz a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), observada a produção e distribuição de material didático adequado. Deste modo, percebe-se que o ECA já possuía arcabouço preventivo e punitivo suficientes para tratar do delicado encargo dos pais de educar os filhos. Todavia, diante da necessidade de se dar maior efetividade às medidas em caso de descumprimento daquele múnus, ampliou-se a relação dos responsáveis por educar e cuidar; tipificou-se as condutas que podem ser caracterizadoras de violação deste direito e conferiu-se ao Conselho Tutelar o dever de preventivamente aplicar medidas punitivas, sem prejuízo da judicialização do caso concreto para aplicação de sanções pecuniárias (art. 249 do ECA); perda da guarda e do poder familiar (art. 129, VIII e X do ECA) e penas criminais.

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